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domingo, julho 11, 2004

A PODRIDÃO DA ALMA

A FAMÍLIA SCHROFFENSTEIN
de Henrich von Kleist

Teatro do Bairro Alto - Cornucópia - (Lisboa)


“A desconfiança é a peste negra da alma”
A Família Schroffenstein, de Henrich von Kleist


Em cena até ao próximo dia 1 de Agosto, A Família Schroffenstein, peça do dramaturgo alemão Henrich von Kleist, magnificamente representada pelo Teatro da Cornucópia, e como habitualmente, encenada por Luís Miguel Cintra, conta também com cenários de Cristina Reis e Daniel Worm d'Assumpção, tendo sido traduzida do alemão por João Barrento. A Família Schroffenstein, constitui uma reflexão belíssima sobre a queda da alma ante o desejo, sob a insídia da suspeição e da vingança, o sacrifício do amor como redenção impossível de alcançar e a corrupção da natureza humana perante a inevitabilidade do destino, para onde a humanidade caminha, por sua própria perdição e ruína. Texto avassaladoramente pessimista, constitui uma obra-prima do romantismo alemão e simultaneamente uma reflexão sobre a danação humana e a impossibilidade da felicidade, retratando o falhanço dos ideais românticos perante uma sociedade inevitavelmente corrompida pela avidez, cobiça e posse. A peça de Kleist, sob um cenário medievo, rude, atravessado por luzes cruas e intensas, ou por uma escuridão dominadora, descreve, com uma eloquência e um lirismo exacerbados, eficazmente transposto do alemão para o português por João Barrento, a anatomia do processo de destruição da alma e a progressão do rancor no coração humano, como praga sem cura, aqui simbolizado pelo dedo mindinho decepado de uma criança, tenra de idade e recém afogada, origem de uma espiral de horror e assassinato sem sentido ou razão. Luís Miguel Cintra, atento a dificuldade desta peça, extremamente longa e densa, considerada frequentemente irrepresentável, opta por um encenação sóbria, monástica, acompanhando o minimalismo da cenografia, onde a palavra, como elemento de intriga, funciona como o despoletar de toda a tragédia e o lirismo presente em todo o texto o suporte sólido para o desempenho dos actores.

Um obscuro contrato celebrado entre os ramos de uma mesma família, os Rossitz e os Warwand, separadas geograficamente por um lago rodeado de montanhas, em que na falta de descendência de ambos os lados, o ramo familiar sem descendentes cederá ao outro a riqueza e o poder (que nunca surgem verdadeiramente nominados, quantificados, mas apenas como motivação abstracta dos actos, do despoletar do inconsciente sob a razão) surge como pretexto para o verdadeiro tema central da peça: a destruição progressiva do carácter pela angústia, pela dúvida, pelo rancor, como se a palavra pudesse ser um cancro que avança pelo corpo com uma única nominação (o nome, extraído, sob tortura, de um dos presumíveis assassínios do filho varão dos Rossitz ou o nome proferido por João, amigo de Otto) e o erro uma fagulha que acende o fogo, numa única faísca, queimando, em sofrimento, o coração humano, até à ruína e à cinza. Renovação do amor condenado, numa revisitação moderna de Romeu e Julieta, A Família Schroffenstein, debruçando-se sobre a inocência do amor, serve-se de ambos os amantes como cordeiros de morte, espaço sacrificial, ante-câmara da solidão e da condenação humana.Com efeito, ambos os amantes, travestidos, morrem trespassados pelos próprios pais, numa cena de comédia de enganos, que perversamente retira aos personagens a dignidade do drama, a imersão na metáfora da tragédia. O amor é impossível de resgatar o homem da perversidade e sucumbe à solidão humana e ao próprio destino traçado pela humanidade, onde a ausência de Deus torna impossível a libertação e a esperança. O erro, indissociável da palavra, como veneno, é destruidor da razão e permanece invisível ante o coração dos homens. Com efeito é um personagem cego que identifica o erro no reconhecimento do corpo dos filhos mortos que não são reconhecidos pelos próprios pais, que choram não já a morte dos filhos, mas a sua própria morte, o vazio existencial. Como escreveu Luís Miguel Cintra, a propósito desta peça “A dúvida destrói a personalidade, afasta o ser humano da natureza inicial, pura e generosa. A sociedade passa a mover-se numa teia absurda de negros pensamentos, inseguranças, remorsos, obsessões de vingança, cegas violências. E a palavra engendra o erro, afasta o homem de si próprio.

Henrich von Kleist (1777 – 1811), suicidou-se, aos 34 anos, com um tiro na boca, depois de ter disparado contra o peito canceroso da sua amante, na consumação de um pacto suicida.



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